A “lógica” da criação e da criatividade

Colourful Light

No livro Auto-Engano o autor Eduardo Giannetti defende a importância das nossas ilusões no processo criativo em qualquer área:

“A racionalidade humana baseia-se em duas operações distintas: o cálculo dos meios e a análise dos fins. Ela permite determinar se o procedimento x é o meio mais adequado para se atingir o objetivo z, e ela ajuda a identificar todos os custos e benefícios associados à obtenção e realização de z. Objetivos que à primeira vista podem parecer atraentes muitas vezes revelam-se indesejáveis à luz daquilo de que teríamos de abrir mão para alcançá-los ou de objetivos alternativos que poderíamos perseguir. A racionalidade é, portanto, um instrumento inestimável quando se trata de evitar equívocos desnecessários – eliminar incongruências entre meios e fins ou erros de avaliação em relação a certos fins. Não é o paraíso, mas nos protege inumeráveis infernos.

O problema é que o cálculo e a prudência – a sobriedade analítica e a acuidade psicológica do pensamento racional – tornam-se irremediavelmente céticos e mesquinhos diante das ambições humanas de criação e grandeza. Escolha qualquer projeto ousado e inovador na arte ou na ciência, na política ou na religião, no mundo esportivo ou empresarial: há uma profusão de razões impecavelmente lógicas e objetivas para não embarcar nele.

“Todas as grandes tentativas”, recorda-se Platão, “são arriscadas, e é verdadeiro o provérbio segundo o qual aquilo que vale a pena nunca é fácil” (República). Apostar na criação, em qualquer campo da atividade humana, é como entrar em uma enorme loteria. O custo da aposta tem de ser pago na entrada, levando consigo muitas vezes a melhor parte das esperanças e energias de uma juventude. As chances de sucesso, contudo, são ínfimas , e para cada premiado há uma multidão de perdedores. “Assim a consciência nos torna a todos covardes, e assim o colorido nato da decisão é recoberto pela sombra pálida do pensar”. Penso, logo hesito.

Sob o olhar gelado da razão, os meios esfriam e os fins definham. Mas o criador não cede. Uma estranha força, mais forte que ele, ilumina, irradia e inflama sua mente. A certeza subjetiva de vitória que o impede à frente, embora falsa para a maioria, fala mais alto que a opressiva probabilidade objetiva do fracasso. “Se o tolo persistisse em sua tolice ele se tornaria sábio”. Muitos, é certo, desistem; alguns talvez prematuramente. A capacidade humana de autocontrole e perseverança, assim como a de autoconhecimento, é limitada. O saber, como sugere Aristóteles, em oposição ao otimismo platônico, não é condição suficiente do fazer: “Eu vejo o melhor caminho e o aprovo, mas sigo pelo pior”. O criador, porém, persiste. O falso ex ante pode tornar-se verdadeiro ex post.

O prodigioso Golias – um guerreiro gigantesco com armadura de bronze, capacete, escudo e lança terríveis – desafia para um combate a dois qualquer nobre ou soldado do exército israelita. Ninguém ousa: o moral das tropas desaba. A parece um menino chamado Davi e aceita o desafio de enfrentar o temível Golias. Todos duvidam e caçoam, mas ninguém o impede. Armado com cinco pedrinhas redondas, uma funda (versão primitiva do bodoque) e a fé inocente de que Deus está do seu lado, o menino Davi acerta a cabeça do gigante filisteu logo na primeira tentativa – não haveria outra! – e derruba-o morto no solo. O exército israelita recobra o ânimo, retoma a iniciativa e vence o inimigo. Como dizia o general puritano Cromwell: “O soldado que reza melhor combate melhor”. Se o cálculo racional resulta a prudente covardia, do auto-engano de Davi – sua inexplicável certeza na vitória e sua temeridade inocente de menino – nasce o milagre humano.”